A transição do pensamento mítico para o pensamento filosófico
- Marianna Flamarion
- 21 de mar.
- 5 min de leitura
Do mito à filosofia
INTRODUÇÃO
Neste ensaio serão analisadas algumas possibilidades lógicas para a passagem transitória entre o pensamento mítico e o pensamento filosófico, os marcos, as lacunas e os efeitos dessa transição no mundo grego antigo em um diálogo com as obras de Jean-Pierre Vernant, um dos principais estudiosos da Grécia Antiga, pois seu trabalho é essencial no que concerne a transição do mito à filosofia.
O pensamento mítico é considerado como uma modalidade de ser no mundo em uma relação com a realidade direta e intrinsecamente relacionada à construção de narrativas que o explicam, majoritariamente, por meio de uma estrutura discursiva imaginária com as figuras de deuses, heróis e crenças.
Por um longo período essa era uma forma de habitar o mundo oferecendo uma visão do cosmos que integra as vivências humanas e as trocas com os eventos, o espaço, o tempo e a natureza, formando uma rede de combinatórias estáveis que limitam a presença de um pensamento caótico em uma estrutura simbólica social.
No entanto, tal forma de pensamento, embora rica em simbologias, significados e sentido, por estar baseada em narrativas que compartilham uma topologia partilhada num espaço finito, ou seja, narrativas construídas dentro de uma mesma comunidade, com uma troca cultural estável e a presença de poucos grandes eventos inaugurais, a tendência é uma repetição do mesmo e a insistência das mesmas interpretações, sem questionamentos profundos.
De acordo com Jean-Pierre Vernant, o nascimento da filosofia pode ser pensado a partir do momento em que o pensamento em suas formações míticas é abandonado e a busca por uma explicação racional do mundo, baseada em princípios universais e não mais em deuses ou heróis começa." (VERNANT, 1982, p. 45).
Como afirma Vernant (1982), "o mito é uma forma de produção de sentido que integra o universo, mas que, por sua narrativa, muitas vezes se torna limitada e circular, enquanto o logos busca uma linearidade, uma causalidade e uma explicação que ultrapassam as definições do mito". Essa passagem do mito para o logos representa uma transição fundamental na forma como o homem retrata e contempla a si mesmo, o mundo ao seu redor e a existência.
A filosofia, ao contrário do pensamento mítico, na busca por explicações lógicas, racionais e universais sobre o cosmos e o homem, afasta-se das narrativas mitológicas. A razão, nesse contexto, se afirma como um instrumento essencial para a investigação de uma verdade estável e imutável.
VARIÁVEIS E CONDIÇÕES: ESCRITA E ESTADO
A transição pode parecer pontual e iminente em muitos textos históricos, entretanto quando analisa-se mais minuciosamente, inúmeras variáveis surgem dando lugar a uma transição gradual e progressiva, pois sabemos que "os gregos não abandonaram o mito de uma vez por todas, mas o transformaram, integrando-o em uma nova estrutura de pensamento que privilegiava a razão e a investigação crítica." (VERNANT, 1982, p. 102).
A invenção da escrita alfabética, é considerada um dos marcos mais significativos para a mudança da estrutura do pensamento humano. Como um dos fatores cruciais para a transição do pensamento mítico para o filosófico na Grécia Antiga, a escrita permitiu a fixação e a transmissão de um legado das ideias de uma forma consolidada, estável e duradoura.
Acredita-se que a invenção da textualidade escrita é inseparável da transição do mito para o logos. A escrita cria as condições para o desenvolvimento de uma reflexão sistemática, formal e transmissível a longo prazo. O processo do desenvolvimento da escrita alfabética possibilita o surgimento de sociedades onde o conhecimento pode ser democratizado.
Com a construção de um legado registrável das ideias começa o surgimento de uma sociedade organizada e que está passível de um avanço mais considerável de seus atributos e pilares internos pela forma mais rápida, clara e permanente deixada pela escrita de seus estatutos.
Essa mudança foi essencial para o surgimento da filosofia, já que a mesma faz uso de uma linguagem formal e lógica para expressar conceitos e ideias abstratos. Ainda que nem toda a filosofia tenha um legado escrito, e muito da oralidade é presente, a estrutura do pensamento oral sofre os efeitos da existência da escrita. A oralidade depois do surgimento da escrita tem estrutura textual.
Além disso, as grandes navegações e, com elas, o avanço do comércio marítimo trouxeram a possibilidade de estender o contato com outras culturas, ampliando, na Grécia antiga, seus horizontes. Esse intercâmbio cultural pode ser atribuído a um tensionamento gradual que gera conflitos internos ao modo de pensar e ver o mundo e, assim, fortalecendo o questionamento ao tradicionalismo mítico.
O contato com outras civilizações, outras sociedades faz com que os gregos percebam que suas crenças não sendo universais, podem ser questionadas, “o que os levou a buscar explicações mais racionais e menos dependentes dos deuses" (VERNANT, 1982, p. 45).
O surgimento da pólis é visto como o verdadeiro berço da filosofia pois o surgimento da vida pública possibilitou que o contrato social fosse debatido, e as decisões do estado fossem estruturadas formalmente, trazendo ao pensamento grego uma posição crítica e racional. A política grega começa a ser sustentada e baseada na assembleia pública e no debate, exigindo que os cidadãos argumentem de maneira lógica e persuasiva,evitando assim as crenças e opiniões particulares. Para Vernant, "a pólis, com sua estrutura de debate público e participação cidadã, criou as condições para o surgimento de uma mentalidade crítica e racional, que substituiu a autoridade dos mitos pela força do argumento."(VERNANT, 1982, p. 67).
A TRANSIÇÃO DO MITO PARA A FILOSOFIA
O pensamento mítico, como abordado ao longo do ensaio, era baseado em narrativas, principalmente, sobre deuses e heróis, e estava profundamente enraizado na cultura grega antes do surgimento da filosofia. Hesíodo, em sua Teogonia, traz uma tentativa clara de organizar o caos primordial, originário, em uma genealogia ordenada, mas ainda assim, o faz por dentro de uma estrutura mítica. Tal como comenta Vernant, "Hesíodo não é um filósofo, mas sua Teogonia representa uma tentativa de sistematizar o mito, o que antecipa a busca filosófica por uma explicação racional do mundo" (VERNANT, 1982, p. 45).
A ascensão para a filosofia pode ser vista, com maior clareza, em pensadores como Tales de Mileto e Anaximandro que dão início a uma procura por explicações racionais e universais para o cosmos, em um movimento de exclusão e abandono das narrativas míticas. Assim concluímos, como Vernant, que "os primeiros filósofos, como Tales e Anaximandro, não rejeitaram completamente o mito, mas o reinterpretaram, buscando princípios universais que pudessem explicar a origem e o funcionamento do cosmos."(VERNANT, 1982, p. 115), Tales de Mileto, por exemplo, propôs que a água era o princípio (arché) de todas as coisas, enquanto Anaximandro sugeriu que o princípio era o ápeiron, as argumentações seguem numa construção lógica e formalizada e não mais mítica.
Portanto, Vernant (1982) ressalta que a filosofia surgiu em um cenário amplo e em linha temporal dinâmica,longa e gradual, com um contexto social e político propício, marcado pelo desenvolvimento da pólis e pela valorização da transmissão escrita do conhecimento. Ele afirma que "a filosofia nasce na cidade, no espaço da ágora, onde o discurso racional e a argumentação se tornam instrumentos de poder e de busca pela verdade" (VERNANT, 1982, p. 102).
Esse ambiente de debate e questionamento foi crucial para que uma nova forma de pensar pudesse surgir, caracterizando uma capacidade de construir uma racionalidade crítica, que substituiu a autoridade da crença mítica e sua tradição pela potência da argumentação lógica.
Assim, a filosofia não é caracterizada apenas pelo abandono absoluto e instantâneo das narrativas míticas, mas pela criação de um novo modo de pensar baseado na razão e na investigação sistemática da realidade, da existência e do cosmos.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
VERNANT, Jean-Pierre.As Origens do Pensamento Grego. Tradução de Ísis Borges B. da Fonseca. Rio de Janeiro: Difel, 1982.
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