O eterno retorno do mesmo
- Marianna Flamarion
- 21 de mar.
- 4 min de leitura
Atualizado: 24 de mar.
"—Sobre o aforismo 341 de A Gaia Ciência, como você se posiciona com relação a esse desafio ético proposto por Nietzsche? Você diria “sim” ao retorno circular infinito e idêntico de todos os eventos da sua vida?".
Ao me deparar com essa pergunta, confesso que demorei bastante para elaborar minha resposta, por ter ficado muito reflexiva com a deixa final.
Acompanhando ativamente o momento atual político de nosso mundo ocidental, eleições norte americanas, mudança de governo Argentino e, claro, também acompanho desde o início o genocídio em Gaza.
Me peguei refletindo sobre a impossibilidade de pensar esse questionamento ideológico e ético do eterno retorno de forma universal. Como pensar que é universal a possibilidade de que o "retorno circular infinito e idêntico de todos os eventos da sua vida" possa ser desejado.
E depois de muito elaborar e refletir trago minhas inquietações:
A proposta nietzschiana de "viver de modo a desejar a repetição eterna" é, sem dúvida, um dos pilares centrais de sua filosofia. A ideia é muito interessante como uma macroestrutura de repetições que englobam a reincidência de eventos que vão se dando a partir de uma infinitude de variáveis que influenciam no curso das coisas, que tal qual um rio que sempre tende ao mar, as levando ao mesmo. Ao analisarmos o curso dos eventos humanos há uma tendência claramente demonstrada pela história de repetição, guerras, posições políticas, conflitos e outros.
A mesma noção de eterno retorno do mesmo e suas implicações éticas são interessantes no que tange incluir que ao sujeito está dado o direto de buscar uma reflexão máxima através da ideia do amor fati o levando ao desejo e aceitação de uma repetição infindável dos eventos de uma vida, atribuído a pensar em uma forma de viver sua existência. Para tal, pensar a finitude do tempo vivido por cada um faz com que essa seja uma reflexão pessoal de uma estrutura universal: a repetição do mesmo, a repetição de cada instante, a repetição que viria da força e da potência do restabelecimento do universo. No entanto, ao analisarmos essa ideia que inclui a particularidade de uma vida para cada sujeito, mas a partir de uma perspectiva crítica e decolonial, é impossível ignorar que ela carrega consigo uma série de pressupostos elitistas, brancos e colonizadores a universalidade dessa proposta é questionável em um mundo marcado por séculos de escravidão, genocídios, guerras, exploração e segregação racial e social. Como pensar em "desejar a repetição eterna" em um contexto onde a própria existência é marcada pela violência e pela negação de condições básicas de dignidade? Como pensar essa filosofia para aqueles cuja existência é marcada pela exclusão, pela negação e pela impossibilidade?
Seria possível imaginar uma construção de vida onde aceitar a repetição do mesmo pudesse se dar da mesma forma para o mestre e para o escravo? Estão ambos inseridos na mesma localização dentro dessa macroestrutura? A implicação ética está para ambos?
"Viver de modo a desejar a repetição eterna" pode ser interpretado como uma proposta branca, elitista e eurocêntrica, que ignora as violências históricas e estruturais que tornam essa tarefa impossível para muitos.
Partindo da ideia do eterno retorno, como uma temática central na filosofia de Nietzsche, podemos concluir que todos os eventos no universo conhecido se repetem infinitamente, dentro de uma lógica que os inclui na mesma sequência, ordem e potência, sejam eventos considerados bons ou ruins. Sabemos que no desenvolvimento dessa filosofia tiveram as influências pré-socráticas e estoicas, que fazem com que Nietzsche apresente essa noção de duas formas: dimensão de uma prova ética, que desafia o sujeito a viver de modo a desejar a repetição eterna do mesmo em sua vida, e como um argumento cosmológico, que sugere a repetição infinita dos eventos com base na finitude das forças e na infinitude do tempo.
Numa tentativa mais autoral tentei explorar essas duas dimensões do eterno retorno, analisando suas implicações éticas e cosmológicas, mas sem negligenciar suas possíveis limitações quando confrontadas com as violências históricas e estruturais que marcam a experiência de grupos marginalizados ao longo do curso da história dos homens. Como questiona Frantz Fanon, "o colonialismo não se contenta em impor seu domínio sobre o presente e o futuro de um povo dominado" (FANON, 1968, p. 210), o que pode nos levar a refletir sobre a viabilidade universal da proposta nietzschiana.
A dimensão ética do eterno retorno é apresentada, não somente, como um desafio existencial, mas particular, no aforismo 341 de A Gaia Ciência, conhecido como "O peso mais pesado", onde podemos ver a construção da ideia de um demônio que propõe ao sujeito a repetição eterna de sua vida, com todos os seus momentos, sejam eles de dor, horror ou felicidade e prazer: "Não te lançarias por terra, rangendo os dentes e amaldiçoando esse demônio? A menos que já tenhas vivido um instante prodigioso em que lhe responderias: 'Tu és um deus; nunca ouvi palavras tão divinas!'" (NIETZSCHE, 2001, p. 341). Podemos ver que essa proposta exige uma aceitação e submissão radical da vida, o que Nietzsche vai construir com a ideia de "Amor Fati". No entanto, como argumenta Achille Mbembe, "a violência colonial não se limita à destruição física. Ela também opera uma destruição simbólica, uma desumanização que nega ao colonizado a possibilidade de existir como sujeito pleno" (MBEMBE, 2014, p. 45). Seria então possível pensar as questões do amor fati para aqueles cujas vidas são marcadas por opressão e violência? Me parece que a ideia de que à esses seja possível desejar a repetição eterna pode parecer não apenas impossível, mas também perversa.
Já quando incluo a dimensão cosmológica do eterno retorno que foi desenvolvida por Nietzsche em seus *Fragmentos Póstumos*, onde ele argumenta que, em um universo finito mas com tempo infinito, todas as configurações possíveis de forças devem se repetir nos parece mais preciso localizar não como algo da vida particular e cotidiana,mas principalmente no sentido histórico que faria o eterno retorno uma espécie de lógica dentro de uma macroestrutura. No Fragmento 1067, Nietzsche descreve o mundo como "uma monstruosidade de força, sem início, sem fim, uma firme, brônzea grandeza de força, que não se torna maior, nem menor, que não se consome, mas apenas se transmuda" (NIETZSCHE, 2003, p. 1067). Essa perspectiva sugere uma repetição eterna e inevitável de todos os eventos, incluindo aqueles marcados por violência, a cosmologia do eterno retorno, portanto, pode ser interpretada como uma naturalização das estruturas de poder existentes, que nega a possibilidade de mudança e emancipação.
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