Construindo um caso: o fracasso e o impossível
- Marianna Flamarion

- 10 de out.
- 10 min de leitura
Atualizado: 31 de out.
CONSTRUINDO UM CASO:
O FRACASSO E O IMPOSSÍVEL
Marianna Carvalho Mattoso Flamarion Vargas
Como fracassar em um mundo de bem sucedidos?
Escrever um caso da melhor maneira. Construir um caso com a melhor formalização. Procuramos incessantemente pelos manuais que nos dirão como fazer, para que ao fazer, o feito seja sem falhas. Mas e quando o que faremos é justamente bordear uma falha? Escrever dela, com ela e a partir dela? E quando o fracasso nos aponta, justamente, a direção mais bem sucedida?
Esse texto é sobre construir um caso, sabendo dançar frente ao impossível, ao som de uma música sem sucesso.
Temos muitos desafios na clínica psicanalítica, especialmente na teoria lacaniana, sobre o como poderíamos pensar a formalização da experiência analítica e construir nossos casos. Frequentemente, observamos um retorno, ainda que em uma forma latente, à lógica psicológica da individualização, mesmo por parte de analistas experientes.
Precisamos, antes de tudo, falar desse equívoco, de fundo epistemológico, para partirmos para a construção do caso. O que encontramos como impasse, dos mais comuns, é a confusão entre o sujeito e a pessoa, entre o sintoma e o sofrimento, entre a posição subjetiva e o que é da ordem do comportamento. Esse equívoco conceitual, que, ao meu ver, decorre de uma fragilidade epistemológica no lacanismo, ou seja, a ausência de uma formalização rigorosa do que se entende por caso clínico e por técnica no ensino de Lacan.
Este texto surge na tentativa de tensionarmos essa lacuna.
Como escutar o sujeito quando se está, sem perceber, escutando um indivíduo? Como construir um caso sem reduzi-lo a um retrato moralizante, narrativo ou psicopatológico? Como sustentar o ato analítico a partir da primazia do significante e da lógica discursiva?
Poderíamos procurar uma forma tecnicista, protocolar de solucionar o que encontramos como dificuldades e lacunas no lacanismo. Isso seria uma ilusão, dessas de tentar dominar o indominável, solucionar o que não tem solução objetiva e prática. Mas, ainda que precisemos sustentar uma inconsistência, não podemos cair no extremo oposto de uma psicanálise sem base teórica, selvagem de DIY (faça-você-mesmo). Como contornar essa questão sem cair nos extremos?
É nesse ponto que surge esse texto.
O que propomos aqui não se oferece como uma técnica, nem como um protocolo clínico a ser seguido feito um manual. Ao contrário, partimos da hipótese de que a construção de caso, na psicanálise lacaniana depende de variáveis tão pouco objetivas e transferenciais que não poderíamos produzir um passo a passo técnico absoluto.
Do que é feita uma análise?
Há um psicanalista, há um psicanalisante e há significantes. Desses três, ao menos, pensamos uma experiência analítica. São inseparáveis, esses três. Um fala, um escreve, um lê, não necessariamente nessa ordem. Falaremos dos pontos que podem nos fazer analistas-leitores, para, então, pensarmos a fala do analisante e a escrita do significante.
Começamos, então, delimitando o que chamaremos de leitura. Leitura que se inscreve dentro de uma estrutura: a estrutura do inconsciente, entendido, aqui, como campo do significante e do Outro. Nesse sentido, a construção de caso é inseparável da posição do analista, de sua escuta-leitura e, sobretudo, de sua relação com a teoria que sustenta a experiência analítica.
Precisamos, para que isso seja sustentado, recuperar a radicalidade do ensino de Lacan com seu impossível e a produção de um saber que faça borda ao impossível em meio a um campo ainda atravessado por demandas de sentido, garantias terapêuticas e capturas imaginárias.
Ao afirmar que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, Lacan desloca o eixo da escuta psicanalítica: não se trata mais de recolher conteúdos latentes escondidos sob o dito, mas de ler a cadeia significante tal como ela se estrutura no campo da enunciação e seus furos, lacunas e vazios. A linguagem é o próprio tecido de constituição do sujeito, e a fala, por sua vez, para além do conteúdo do que é dito, comporta, em sua materialidade, o surgimento de um saber que escapa ao sujeito cartesiano do eu.
Cada enunciação delimita uma tentativa de localizar-se no campo do significante, tentativa que se escreve sempre com uma falha constitutiva. Essa falha será a própria via pela qual o inconsciente se manifestará.
A disjunção entre o que se diz e o que se quer dizer constitui o espaço do aparecimento do sujeito. A fala do analisante configura, assim, um acontecimento de linguagem: nela emerge uma posição subjetiva que se produz nas fissuras do discurso, nos deslocamentos e nos equívocos que sustentam o dizer. A linguagem que, insistimos, não serve para comunicação, produz o sujeito de nosso trabalho.
Há psicanalista.
O desafio do analista será ler operações significantes nos cortes, nas repetições, nos equívocos e nas falhas da comunicação. A clínica lacaniana exige uma escuta que se descole da busca de sentido - fechado dos signos e significados- e se oriente pela função da estrutura incluindo o campo de onde o sentido escapa.
Um psicanalista começa com a psicanálise. Não basta estarmos na poltrona e o paciente no divã para sermos - analista e analisante. É preciso um ponto de partida, um ponto zero, da disjunção entre ser e pensar, da subversão do eu cartesiano e da instauração de um discurso outro, que não aquele dos bate-papos, conversas e catarses do mundo.
O psicanalista, que surge de sua própria análise, deve estar advertido dos efeitos de uma escuta comportamental, imaginária e racionalizada. Pois é em outro plano, com outro efeito que ele atua, a própria psicanálise surge como efeito de linguagem, essa que produz sujeito.
Para construir seus casos o psicanalista deve, portanto, começar pela formalização - não da experiência empírica - mas da própria teoria com a qual se sustenta a escuta. Tal teoria, tratada somente como o que constitui um acervo de conceitos ou uma coleção de saberes acumulados, não garante que ocorra uma análise. Trata-se de que o analista se coloque frente ao desejo, à linguagem e ao real a partir de sua formação teórica. A psicanálise aparece a cada vez com o analista, seu desejo de psicanalisar e a impossibilidade da tarefa.
Ao sustentar que a clínica lacaniana é inseparável da estrutura que a funda, recusamos tanto o psicologismo quanto o tecnicismo. O primeiro reduz a clínica ao plano imaginário, atribuindo aos fenômenos uma causalidade interior. O segundo a congela em procedimentos e protocolos, esquecendo o caráter estrutural da ética, do desejo e da práxis.
A construção de um caso, assim, requer a inscrição dessa práxis: o analista lê, opera, corta e, ao fazê-lo, produz sua própria leitura da psicanálise na particularidade transferencial daquele caso.
Há psicanalisante.
De onde começa a análise senão desse que nos fala, nos endereça sua vida, sua história e seu lugar no mundo? O paciente, que vem a ser um psicanalisante, em sua árdua tarefa de análise pessoal, é a materialização encarnada de onde muito, mas não todo, do nosso material discursivo imprescindível na experiência analítica. A experiência é dele, ainda que não só. Trabalharmos com o sujeito do inconsciente, do desejo, não é negligenciar o falante na cena. Que o psicanalisante seja a pessoalidade do pessoal da análise. Mas que nosso sujeito não seja confundido com a pessoa e nem com o eu imaginário do analisante, pois é o efeito que surge do intervalo, da lacuna no discurso, e se constitui da falha na consistência do enunciado.
Quando dizemos que o sujeito “aparece”, não nos referimos a uma substância que se manifesta, mas a um efeito lógico de deslizamento. O sujeito é o que escapa. E é nesse ponto que a noção de construção de caso adquire densidade: construir um caso é operar uma leitura da posição do sujeito como efeito significante e não uma descrição do eu e seus sofrimentos, seus dilemas de vida pura e simplesmente.
Se a clínica lacaniana se organiza a partir da primazia do significante e da estrutura, a escuta do analista não pode se limitar à recepção do discurso manifesto. Ouvir não é suficiente; é preciso ler o que se escuta.
A diferença entre escutar e ler remete à distinção entre o que se diz e o que está sendo dito. O que se diz corresponde ao nível do enunciado, da cadeia discursiva tal como é organizada pelo eu.
Já o que está sendo dito remete à enunciação ao lugar estrutural de onde a fala é emitida, ainda que o sujeito não tenha consciência disso. O sujeito do inconsciente, em Lacan, não é o sujeito que fala, mas o sujeito que é falado, e que nisso escapa, que desliza entre os significantes, que tropeça na fala.
Para que isso seja possível, é necessário que o analista se desloque da posição de intérprete da narrativa para a de leitor de operações estruturais. O que está é principalmente, a função da fala: como a fala se articula, o que ela repete, como ela falha, onde ela hesita. É nesse ponto que a escuta se torna uma leitura: quando o analista deixa de escutar o “sentido” da fala para operar sobre seus efeitos de significação na inclusão da falha do sentido.
Ao se manter na escuta do enunciado, o analista corre o risco de capturar-se na demanda do analisante frequentemente moral, comportamental ou terapêutica. Essa captura é reforçada pela transferência, que tende a colocar o analista na posição de mestre, como aquele que “saberia” o que o analisante “realmente quer”. Ceder a essa captura é renunciar ao ato analítico.
É por isso que a escuta lacaniana exige que o analista se mantenha à altura da função de causa, e não de resposta. A leitura do que está sendo dito só se torna possível quando o analista suporta o não-saber sem completá-lo com explicações, soluções ou conselhos. A leitura analítica requer uma operação que supõe, no princípio subversivo da clínica, a não coincidência entre sujeito e eu, entre fala e discurso, entre demanda e desejo.
Há significantes.
Uma vez deslocado o eixo da escuta da interioridade psíquica para a estrutura da linguagem, torna-se necessário retomar com precisão os fundamentos sobre os quais Lacan reconstrói o edifício da clínica: a noção de estrutura, o estatuto do significante e a concepção de sujeito como efeito.
A estrutura é aquilo que precede e organiza a experiência: não é “algo” sob o qual se colocam os fenômenos, mas o próprio modo pelo qual os fenômenos se tornam inteligíveis. O inconsciente, sendo estruturado traz um campo de articulações regidas por leis próprias.
As operações do inconsciente, tal como formalizadas por Lacan, seguem as leis do significante. Um significante, em sentido estrito, não é uma coisa, nem uma ideia, tampouco um veículo de significado próprio.
Trata-se de uma unidade relacional cuja função só pode ser definida negativamente: o significante não significa a si mesmo, o significante sozinho não significa nada e não há significante senão articulado. Seu valor só pode ser constituído a partir da diferença, da articulação com outro significante, e do efeito retroativo dessa relação.
Essas propriedades do significante operam uma ruptura com a tradição representacional da linguagem onde o signo está submetido à lógica da comunicação: representa algo para alguém, num circuito fechado de sentido. O significante, ao contrário, não representa um objeto, ele opera na cadeia como diferença pura. Seu valor será sempre posicional. Não há significante em si, nem significado próprio: há lugar na estrutura, marcado por cortes, repetições e articulações. O que chamamos de “sentido” não é dado, e sim construído a posteriori e sempre instável. Ele emerge do funcionamento da cadeia, da retroação significante, e não de qualquer intenção ou conteúdo.
Essa lógica é importante para a construção de um caso clínico que se oriente pela teoria proposta por Lacan. Um analista que escuta palavras como “fracasso”, “abandono” ou “tristeza” como se fossem automaticamente significantes, por sua frequência ou carga afetiva, acaba caindo na emboscada da captura imaginária. Podendo assim, num equívoco, tomar o sofrimento como signo, o sintoma como uma evidência, e o caso como uma narrativa empirista.
Há caso.
A historização de um caso, nesse sentido, não é o pano de fundo da história pessoal. É por isso que o caso, para ser analítico, deve ser construído segundo a lógica significante e não segundo a lógica causal, psicológica ou terapêutica. Não é o que o analisante diz que importa, mas, principalmente, o que -do que diz - não coincide com o que ele está dizendo. Como o significante se inscreve, ou falha em se inscrever, na cadeia e na histórica mítica que atravessa seu surgimento.
Construir um caso é centralizar o mito neurótico - e não a história e seus fatos, eventos e acontecimentos - e a estrutura simbólica que o organiza. Se o mito é a escrita do impossível — a ficção, mais verídica, pela qual o sujeito tenta simbolizar o real que o funda, ao analista é confiada a tarefa de ler essa escrita.
Da fala atual do analisante - à sua história - historicamente discursiva - coletamos os fatos de ditos, os elementos significantes que ao se costurarem interagem retroativamente reorganizando os contos, alterando os personagens e fundando algo novo naquela velha história.
Fracassar
A construção de caso, em psicanálise, se orienta pela estrutura, pela lógica e pelo estatuto do significante como uma produção. O que se constrói, portanto, é a formalização de um percurso em que um sujeito do inconsciente se inscreve e falha em se inscrever na cadeia discursiva.
Tal operação exige uma posição ética, a ética do desejar subversivo à modernidade. Nesse campo, sustentar eticamente o impossível e a falta da estrutura. A construção de caso não pode ceder à tentação do fechamento, da completude ou do sentido pleno. Pois consiste em recolher os efeitos de uma escuta que renuncia ao saber garantido, ao saber todo e que, justamente por isso, lê onde há um furo.
Formalizar um caso é, também, recusar a ilusão de que a análise visa adaptar, curar ou normalizar. O caso bem construído não é aquele que organiza todas as cenas, todas as memórias, todo o relato, mas, ao contrário, o que desloca subversivamente as demandas de completude idealizadas.
Embora a prática clínica exija ferramentas, nenhuma ferramenta analítica pode ser tomada como uma garantia última. A construção de um caso tampouco escapa a essa lógica, o objetivo não é o de garantir-se, mas o de instrumentalizar a operação com o real.
Por isso, na clínica lacaniana, a construção de caso não é separável da posição do analista. Só há caso clínico quando há sujeito do inconsciente e só há sujeito do inconsciente quando o analista sustenta a falta e a perda inaugural.
O caso bem construído é aquele que, no seu próprio modo, sabe fracassar: sabe não representar o todo. E, por isso mesmo, sabe dizer algo daquilo que insiste como impossível.
© 2025 Marianna Carvalho Mattoso Flamarion Vargas
Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons Atribuição–Não Comercial–Sem Derivações 4.0 Internacional (CC BY-NC-ND 4.0). Você pode compartilhar este material, desde que atribua o crédito à autora, não o utilize para fins comerciais e não o modifique.
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Texto incrível. Não apenas pela forma, mas por tudo o que ele provocou em mim. Especialmente a certeza de que me inscrever na oficina de escrita de caso é mais um passo importante na minha clínica. Bora!