O relativismo em Protágoras e o pensamento lógico contemporâneo no ensino de Jacques Lacan
- Marianna Flamarion
- 21 de mar.
- 9 min de leitura
ORELATIVISMO EM PROTÁGORAS E O PENSAMENTO LÓGICO CONTEMPORÂNEO NO ENSINO DE JACQUES LACAN
No presente ensaio, apresento a partir do pensamento de Protágoras (490-415 a.C.), um sofista, natural de Abdera, cidade Grega, as possíveis interpretações e análises de sua famosa tese do homem-medida no que diz respeito ao relativismo da mesma . A leitura do pensamento de Protágoras é enviesada pelos autores que dela fizeram uso na Grécia antiga, pelo fato de que não é possível acessar seus textos de forma íntegra e direta. A obra de Protágoras aparece em pequenos fragmentos preservados principalmente por filósofos que a partir de sínteses do pensamento do sofista produziram seus próprios trabalhos, como o caso de Aristóteles e Platão. Um dos sofistas mais famosos e comentados, Protágoras é conhecido amplamente por sua tese que diz, na tradução mais aceita: o homem é a medida de todas as coisas, das que são, enquanto são, e das que não são, enquanto não são. Tanto Platão quanto Aristóteles, apresentam críticas e tecem argumentos para refutar a tese do homem-medida. O texto inicia apresentando tal tese e enfatizando a possibilidade de ler em Protágoras uma concepção de relativismo que gera uma tese ontológica relativista criticada pela filosofia de Aristóteles e levantada criticamente em diálogos de Platão. A proposta do ensaio é articular a ideia central da tese do homem-medida com outras teses que também apresentam argumentos dentro de uma lógica subversiva e contraditória, paraconsistente. Portanto, não há uma busca objetiva de defender tal tese, mas tirar, a partir dos fragmentos mais conhecidos, consequências da mesma e aproximá-la com algumas máximas do psicanalista Jacques Lacan sobre o sujeito, o ser e a verdade. Para aproximar o pensamento de Protágoras ao de Lacan irei levantar a questão da Verdade a partir da concepção de Real e linguagem. Ao levantar a questão da linguagem como fator central do pensamento sofista, podemos trabalhar a noção de que se o homem nomeia o que é e o que não é, o ato de nomear não se separa da coisa. Concluindo assim que a linguagem está também em jogo quando as coisas são ditas como sendo ou como não sendo pelo homem. Argumento que as consequências dos axiomas levantados no pensamento sofístico de Protágoras se aproximam da relatividade da Verdade particular do sujeito em Lacan, assim como a impossibilidade de que a Verdade seja alcançável em plenitude e o fato de que o homem não poderia estar descentralizado na questão do Ser. Ao homem não seria possível acessar o Real das coisas sem ser ele mesmo parte dessa busca pela Verdade, interferindo no trajeto.
A TESE DO HOMEM-MEDIDA
Protágoras é considerado um grande sofista, que, malgrado sua importância, ou talvez por ela, foi muito criticado pelos filósofos. O cerne das críticas, a que temos acesso principalmente pelos textos de Platão e Aristóteles, está em sua relativização da questão do ser e da verdade, decorrente do fragmento que propõe o homem como medida de todas as coisas, das que são como são e das que não são como não são. O relativismo em jogo pode ser descrito como a introdução de uma sentença a mais na avaliação da verdade de uma afirmativa primária sobre um ser. Ao afirmar “A é B” é preciso acrescentar, “de acordo com C”. Esse “de acordo” é entendido ora como relativo à percepção (Platão), ora como relativo ao contexto de onde parte a avaliação de uma verdade (Sexto). A avaliação de um predicado qualquer dependeria, então, da pessoa que faz tal avaliação, sem que esta seja tratada como absoluta (Melo e Caminha, 2018). As críticas a este pensamento tomam posições em relação à questão da verdade e do ser que deslegitimam o relativismo do sofista. Um exemplo disto é o fato da lógica, em Aristóteles, propor os princípios da não-contradição e da identidade. O fragmento textual do pensamento de Protágoras sobre a expressão dissoi logoi aponta o fato de que em toda coisa/questão (panta/pragmata) existem dois logoi (dois discursos) opostos, sendo o Homem aquele que aponta e nomeia, ou seja dá a medida, ao objeto que seria essencialmente contraditório. Haver possibilidade de dizer A e não A sobre ummesmo ser é algo que não se submete à lógica Aristotélica. Dentro da lógica aristotélica, é preciso um método para alcançar a proposição verdadeira, pois a verdade não pode ser relativa. A negação do princípio da não-contradição é a base estrutural para alcançar a ideia do homem-medida, visto que somente negando tal princípio cria-se a possibilidade de singularizar a experiência com a Verdade como vemos em TEETETO de Platão no trecho a seguir:
S. — Contudo, arriscas-te a não teres emitido uma definição trivial sobre o saber, mas sim aquela que diz também Protágoras. O modo é algo diferente, mas diz a mesma coisa, pois afirma que «a medida de todas as coisas» é o homem, «das que são, enquanto são, das que não são, enquanto não são». Leste isto em algum lado? TEET.- Li, e muitas vezes. S. — De certa maneira, o que diz é isto: que cada coisa é para mim do modo que a mim me parece; por outro lado, é para ti do modo que a ti te parece. E tu e eu somos homens, não é assim? TEET.- É, de facto, assim que ele diz. [b] S. — No entanto, é provável que um homem sábio não fale ao acaso: sigamo-lo, então. Não acontece, por vezes, um de nós sentir um mesmo sopro de vento frio e outro não? E um sentir pouco frio e outro muito? TEET. —Muitas vezes. S. — Então, como dizemos que é o sopro de vento, em si mesmo? Que é frio ou que não é frio? Ou, persuadidos por Protágoras, diremos que é frio, para quem sente frio, e não é frio, para quem não o sente frio? TEET. —Assim parece. IDENTIDADE EATRIBUTOSDOOBJETO Não é possível que o homem apreenda ou acesse a identidade máxima de um objeto pelo fato de que é sempre possível que o acesso de um outro homem a esse mesmo objeto produza uma distinção de logos. Há sentidos múltiplos atribuídos ao mesmo objeto. O pensamento de Protágoras inaugura o caminho do que, no pensamento moderno, origina a lógica paraconsistente, ou ainda há uma aproximação possível com a lógica de Frege, que sustenta a possibilidade de observar sentidos (Sinn) múltiplos em um mesmo referente (bedeutung). Ao homem ser possível dizer que a coisa é, quando em seu caso o é, e que não é, quando no caso não é, é um corolário do homem não ter acesso ao ser sem estar como interferente dessa operação. Seria importante salientar que as traduções dos fragmentos do pensamento de Protágoras apontam para uma ideia dupla de homem individual e homem universal. A maioria dos intérpretes sustenta que Protágoras falava sobre ambos. Se, por um lado, para Parmênides o ser é e o não-ser não é, para Protágoras o homem diz o que o ser é e o que o ser não é. Se fosse somente o homem enquanto indivíduo como medida estaríamos em uma relativização total e empírica da experiência. Neste trabalho é necessário defender a dualidade no pensamento de Protágoras referente ao homem individual e universal. Há a existência dos homens em sua esfera particular e individual, mas há a concepção de Homem que são os atributos mínimos compartilhados por todos os homens particulares, fazendo com que esses sejam parte de um todo. Há na medida dos homens uma experimentação das coisas que não é possível apartar da linguagem. A questão não será sensório-perceptiva em sua totalidade, a medida não parte de uma experiência empírica completa, pois o homem também é universal no sentido de ter algo essencialmente partilhado em todos os homens. Defenderemos que o que é universalmente partilhável é a linguagem. Assim podemos afirmar que o objeto não está aberto a todo e qualquer sentido como seria em um relativismo completo. Na defesa de Protágoras que há a existência de elementos opostos nos objetos, há dois logoi, há uma oposição que produz a possibilidade do homem nomear o que é e o que não é, mas isso não infere que tudo poderia ser nomeado: há um estatuto interno que limita o que se pode dizer daquilo que é e o que não é.
O HOMEM-MEDIDA E O ENSINO DE LACAN
A construção do homem-medida possibilita uma aproximação com o conceito de parlêtre lacaniano e os efeitos de verdade que produzem uma apreensão da realidade de forma particular ao sujeito. Esse neologismo lacaniano resulta da junção dos vocábulos discurso e ser (parle/être) alterando a ordem intuitiva de um ser falante, colocando o ser como resultado da fala, um “falasser”. Como conceito, o parlêtre aponta o fato de que o discurso produz o ser falante, como homem, contradizendo a ideia de que o homem é um ser falado. É preciso então estabelecer as leis da linguagem para poder concernir aquilo que diz respeito ao ser. O homem como essencialmente faltoso aponta para que a medida de todas as coisas, sendo humana, seja uma medida marcada pela impossibilidade de um saber todo, um saber absoluto e uma Verdade toda, ideia central ao ensino lacaniano. No ensino de Lacan a conceituação de verdade como “não-toda” (Lacan, 1985), aposta num movimento sofístico, contrariando o estatuto da filosofia antiga, estabelecendo uma singularidade, uma possibilidade relativa da Verdade. Para Lacan a Verdade não pode ser completamente dita por sempre manter um traço do Real, “sempre digo a verdade: não-toda, porque dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é impossível, materialmente: faltam palavras. É por esse impossível, inclusive, que a verdade tem a ver com o real”. (Lacan, 1974) A partir da experiência do sujeito é que pode-se constituir-se um saber sobre a verdade (Lacan, 1973), algo pode ser dito de verdadeiro ainda que de forma particular e relativa. Aproximando então a possibilidade de múltiplos sentidos e a tese do homem-medida de Protágoras. A questão que se coloca não é relativizar que as coisas não existam com uma ontologia autônoma, mas que a existência das coisas em relação ao homem é uma questão inacessível pelo fato de que o homem só acessa as coisas a partir de si mesmo. Propomos uma leitura da sofística de Protágoras como aquela que estava interessada em construir/formular as leis intrínsecas à linguagem. Assim, o homem aparece como medida do ser e do não ser por ser possível sustentar que aquilo que o homem acessa do campo do ser passa pela linguagem dos homens. Nisso é possível o diálogo com o ensino lacaniano. Para Lacan, o homem não acessa uma realidade pura e bruta, e também não acessa uma verdade total. A verdade é sempre não-toda e semi-dita e a realidade do sujeito é sempre fantasística. Isso aponta que o homem nunca está desimplicado da busca pela verdade das coisas, independente do percurso feito pela filosofia ao longo dos séculos.
O relativismo da Verdade a partir do homem-medida estabelece uma relação entre Doxa e Verdade singularizando a experiência dos homens como parte intrínseca do acesso ao Real. Há uma conclusão, equivocada, de que isso faz do pensamento de Protágoras desordenado e sem critério lógico, resultando então na individualização radical da experiência e da verdade. Se não há, para Protágoras, uma separação entre verdade e opinião (Doxa), vemos a impossibilidade de acessar uma Verdade sem que o homem seja considerado como seu meio de acesso. O que não elimina a existência de uma Verdade, mas inclui o homem como elemento interferente desse acesso. Há a possibilidade de concluir com isso uma dupla dimensão, a dimensão da Verdade da Verdade, sendo esta inacessível aos homens, por não poderem atingir neutralidade na busca pela verdade, e uma outra dimensão que seria a dos efeitos de Verdade como nos diz Lacan (Lacan, 1970). O homem fazendo parte do meio poderia somente acessar parte da Verdade, ou seja, “a coisa ou o fato, que existe antes e independentemente do homem, encerra em si a possibilidade das diversas sensações, e cada um atuará naquela que for mais congenial a si próprio.” ( CASERTANO,G.) Isso nos mostra que o que está em jogo não é a relatividade absoluta e a inexistência da coisa em si mesma. Quando relativizamos as sensações, a experiência e o acesso à verdade não estamos dizendo que não há algo de Real anterior à existência humana mas que na verdade a própria existência dos homens traz em si condição de que os fatos sejam fatos de linguagem, regidos por sua lei. O que produz em consequência fatos de discurso e uma realidade acessível com e através da interferência própria da existência do homem. A verdade é inseparável dos efeitos de linguagem, na tese do homem-medida é possível defender a existência de uma análise das leis que regem a linguagem, a busca pela compreensão de sua lei. “O discurso de Protágoras é também a primeira tentativa que conhecemos de refletir sobre a especificidade do próprio discurso, sobre suas regras, sobre suas possibilidades, sobre suas implicações: é uma tentativa de refletir sobre a linguagem e sobre as suas leis. Com efeito, o campo em que os sofistas, mais que os demais, revelaram sua maior originalidade foi certamente o campo dos estudos acerca da linguagem.” ( CASERTANO,G.) Não se pode localizar a verdade senão no campo onde o prórpio homem se insere. Sendo a verdade inseparável dos efeitos de linguagem e o homem inseparável da linguagem, o acesso ao que é verdadeiro só pode ser dito, e ao ser dito, já temos a construção de uma verdade parcial, velada e relativa por parte do sujeito que a diz.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CASERTANO, Giovanni. Sofista. Político. São Paulo: Nova Cultural. (Coleção Os pensadores) (1972)
FREGE, G. (2011). “Sobre Sentido e Referencia”.
FUNDAMENTO– Rev. de Pesquisa em Filosofia, v. 1, n. 3, maio– ago.
LACAN, Jacques. Seminário 17- O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. (1969/1970) LACAN, Jacques., Televisão. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003– p. 508. (1974) LACAN, Jacques. (1985). O seminário. Livro 20. Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
MELO, Ana Rafaella Pereira e CAMINHA, Iraquitan De Oliveira. Sobre Protágoras e Platão: divergências e convergências acerca do fragmento do homem medida.
AUFKLÄRUNG, v.5, n.2, Mai. Ago., João Pessoa, 2018.
PLATÃO. Teeteto. Trad. Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri. Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa. 2010
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